Litteratura de Natal
Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, s?o esses lindos livros para crean?as, que constituem a litteratura de Natal.
N?o falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos editores francezes, em encaderna??es decorativas como fachadas de cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem lê e s?o offerecidos ás crean?as, mas realmente servem para obsequiar os papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos; apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a a?o, sob a fiscaliza??o da mam?, que tem medo que se deteriore a encaderna??o; e o resplandecente volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao lado do candieiro vistoso.
Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para crean?as, que tem os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e genios-em nada inferior á nossa litteratura de homens sisudos. Aqui, apenas o bébé come?a a soletrar, possue logo os seus livros especiaes: s?o obras adoraveis, que n?o contém mais de dez ou doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo enorme, e de um raro gosto de edi??o. Ordinariamente o assumpto é uma historia, em seis ou sete phrases, e decerto menos complicada e dramatica que O Conde de Monte-Christo ou Nana; mas emfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe.
Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos Tres velhos sabios de Chester: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontr?o ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester!
Como estas ha milhares: a Cavallgada de Jo?o Gilpin é uma obra de genio.
Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, proporciona-se-lhe outra litteratura. Os sabios, a barrica, os trambulh?es, já o n?o interessariam; vêm ent?o as historias de viagens, de ca?adas, de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do triumpho, do esfor?o humano sobre a resistencia da natureza.
Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara-e provando sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da crean?a para o paiz do maravilhoso:-n?o ha n'estas litteraturas nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com drag?es de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo que a crean?a, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural, e a consideral-o do genero boneco, como os seus proprios carneirinhos de algod?o.
O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma boneca honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, n'uma guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura é profunda. As priva??es de soldados vivos n?o impressionariam talvez a crean?a-mas todo o seu cora??o se confrange quando lê que padecimentos e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas bayonetas torcidas ella todos os dias endireita com os dedos: e assim póde ficar depositado n'um espirito de crean?a um justo horror da guerra.
As li??es moraes que se d?o d'este modo s?o innumeraveis, e tanto mais fecundas quanto sahem da ac??o e da existencia dos sêres que ella melhor conhece-os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos: popularisa??es de sciencias; descrip??es dramaticas do universo; estudos captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a historia; e, emfim, em livros de imagina??o, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no espirito tenro securas de misanthropia, nem uma falsa idealisa??o produza uma sentimentalidade morbida.
é no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas dos livreiros s?o ent?o um paraizo. N?o ha nada mais pittoresco, mais original, mais decorativo, que as encaderna??es inglezas; e as estampas, as c?res leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras d'arte, de gra?a e d'humour.
N?o sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edi??es de luxo, de Pariz, de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A Fran?a possue tambem uma litteratura infantil t?o rica e util como a de Inglaterra: mas essa Portugal n?o a importa: livros para completar a mobilia, sim; para educar o espirito, n?o.
A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para crean?as; na Dinamarca, na Suecia, elles s?o uma gloria da litteratura e uma das riquezas do mercado.
Em Portugal, nada.
Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres crean?as. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Gar??o, ou outro qualquer desses mazorros sensabor?es, quando os infelizes mostram inclina??o pela leitura.
Isto é tanto mais atroz quanto a crean?a portuguesa é excessivamente viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes, só come?amos a ser idiotas-quando chegamos á edade da raz?o. Em pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, para citar só paises t?o pequenos como o nosso, erguer-se-hia consideravelmente entre nós o nivel intellectual.
Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos, sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos a rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica (de logica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!
Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa. Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em escrever essas faceis historias: n?o é necessario o genio de Zola ou de Thackeray para inventar o caso dos tres velhos sabios de Chester. Ha entre nós artistas, de lapis facil e engra?ado, que commentariam bem essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem relevo, lavado a c?res transparentes... E quantos milhares de crean?as se fariam felizes, com esses bonitos livros-que, para serem populares e se poderem despeda?ar sem prejuizo, devem custar menos de um tost?o!
Eu bem sei que esta ideia de comp?r livros para crean?as faria rir Lisboa inteira. Tambem, n?o é a Lisboa que eu a offere?o. Lisboa n?o se occupa d'estes detalhes.
Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama em que se morre de paix?o ao luar, o fadinho ao piano, o saboroso namoro de escada, a endeixa plangente, a b?a facadinha á meia noite, o discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza de cuia-emfim, tudo o que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os seus filhos intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade.
Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem alguns bons livros, bem engra?ados, bem alegres, para os bébés-eu teria feito ao imperio um servi?o colossal, que n?o sei como me poderia ser recompensado.
Uma b?a fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa já mobilada e alguns cavallos na cavallari?a, n?o seria talvez de mais. Se a gratid?o do governo imperial quizesse juntar a isto, para alfinetes, um ou dois milh?es em ouro, eu n?o os recusaria. E se me n?o quizessem dar nada, bastar-me-hia ent?o que um só bébé se risse e f?sse alguns minutos feliz. Pensando bem-é esta a recompensa que prefiro.