O que resta d'Alexandria.-A estreia d'Arabi Paxá.-Algemas ao café.
Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo convidativo dos Guias de viajantes como uma rica cidade de 250.000 habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera, tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum Guia, porém, por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.
Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus n?o possuia hoje nenhum monumento do seu passado, a n?o contarmos, ao lado d'um velho cemiterio mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de Pilar de Pompeu, e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de Luxor, que gosava a grotesca alcunha de Agulha de Cleopatra. E esta mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo dos comboyos...
Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos, antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedifica??o, a grande metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente d'uma vasta pra?a, a famosa pra?a dos Consules, orgulho de todo o Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares francezes-como um faubourg de Bordéus ou de Marselha transportado para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
A parte arabe da cidade n?o tinha nenhum pittoresco oriental: eram arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em terra?o, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre, Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a esta??o, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes, as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora deuses, ainda hoje aves sagradas...
Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes, de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta de linho branco, davam o bra?o á marujada de Marselha e de Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lan?a ao hombro, embara?avam a passagem dos tramways americanos, onde os sheiks, de turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de libré-Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de uma cidade levantina, e n?o fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete, como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.
Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo, Alexandria é apenas um immenso mont?o de ruinas.
Do bairro europeu, da famosa pra?a dos Consules, dos hoteis, dos bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede enegrecida que se vae alluindo.
Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldi??es, póde-se pensar, em presen?a de tal catastrophe, que passou por alli a colera de Jehovah-uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma chaga viva da Terra. Mas d'esta vez n?o foi Jehovah. Foi simplesmente o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os seus canh?es de oitenta toneladas.
Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,-aos nomes de Caracalla, o pag?o, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinario-o nome de Sr. William Gladstone, o humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da democracia christ?. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do snr. Gladstone n?o é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma-por outro lado esta brusca aggress?o de uma frota de doze coura?ados, cidadellas de ferro fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortifica??es de Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia n'isto:-ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a politica imperial d'Inglaterra, ou os interesses da Inglaterra no Oriente, póde levar um ministro christ?o a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes n?o ser ministro d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para n?o partilhar a cumplicidade d'esta brutal destrui??o d'uma cidade inoffensiva, deu a sua demiss?o do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de oposi??o...
Tudo o que se prende immediatamente com a aniquila??o de Alexandria, é de facil historia, sobretudo, tra?ando-se só as linhas principaes, as unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil legoas do Egypto e das suas desgra?as.
No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilh?o do almirante Conrad. A Fran?a e a Inglaterra estavam alli com morr?es accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de camaradagem, as finan?as egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns coupons,-a Fran?a e a Inglaterra, protegendo maternalmente os interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os srs. Coloin e Blegniéres, ambos com func??es de secretarios de fazenda no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e applicar-lhe a parte mais pingue á amortisa??o e juros da famosa divida egypcia!
De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da Fran?a, eram na realidade dous enormes papeis de credito, i?ados no tope dos coura?ados. No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas altas civilisa??es do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os coura?ados estavam alli fazendo uma demonstra??o naval, de facto realisando uma interven??o estrangeira-porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva declarara-se coacto. Todos os que conhecem a historia contemporanea de Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que significa esta deliciosa phrase: El-rei está coacto! Isto quer dizer que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma popula?a carrancuda que agarrou em chu?os, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminui??o de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se desgra?adamente, porém, os soldados est?o unidos aos cidad?os, ent?o El-rei declara-se coacto, e pede a um rei visinho, mais forte e menos atarantado, que lhe mande uma divis?o, a restabelecer a ordem-isto é a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia, dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje, realmente, já se n?o usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.
O Khediva, esse excellente e pacato mo?o, tinha sido victima de um pronunciamento planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do salamalek, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para bem da grande popula?a fellah, e t?o largas que constituiam uma mudan?a de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o amor da na??o, a felicidade dos subditos, que o ceremonial indica nas occasi?es d'atrapalha??o regia e pareceu t?o satisfeito com o interesse, que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que os recompensou á maneira oriental-convidando-os a um banquete. Em torno da festiva mesa a cordealidade foi grande, o champagne espumou contra as prescrip??es do Alcor?o, e entre o sabor das truffas e o aroma dos ramos, o futuro do Egypto appareceu c?r de rosa... O café foi servido nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores, do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas, levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza, foram conduzidos ás palhas do carcere.
N?o ha nada mais delicioso-nem mais turco.
A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a energia de Sua Alteza!