Chapter 4 O NATAL

O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno triste-d'essa tristeza particular que offerece, por um dia de calma ardente, a pra?a deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fog?o apagado, n'uma sala a que se n?o voltará mais...

O que nos estragou o Natal, n?o f?ram decerto as preoccupa??es politicas, apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebelli?o do Transvaal em que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um dos mais experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que amea?a ensanguentar toda a Africa do Sul n'uma guerra de ra?as; nem a situa??o da Irlanda, que já n?o é governada pela Inglaterra, mas pelo comité revolucionario da Liga Agraria-seriam inquieta??es sufficientes para tirar o sabor tradicional ao plum-pudding do Natal. As desgra?as publicas nunca impedem que os cidad?os jantem com appetite: e miserias da patria, emquanto n?o s?o tangiveis e se n?o apresentam sob a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada, n?o tirar?o jámais o somno ao patriota.

N?o; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente, deslizando timidamente sobre uma immensa pe?a de seda azul desbotada, um Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece t?o insipido e t?o desconsolado como seria em Portugal a noite de S. Jo?o, noite de fogueiras e descantes, se houvesse no ch?o tres palmos de neve e cahisse por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional!

Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez, basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o têm popularizado.

O assumpto n?o varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada d'um parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e a perder de vista tudo está coberto da neve cahida, uma neve branca, f?fa, alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto á grade do parque, uma mulher e duas crean?as, atabafadas nos seus farrapos, com lampe?es na m?o, v?o cantando as l?as; e ao fundo, entre as ramagens despidas, ergue-se o massi?o castello, com as janellas flammejando, abrasadas da grande luz de dentro e da alegria que as habita.

E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo na noite nevada.

Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das cadeiras, os tropheus de ca?a, apparecem adornados das verduras do Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes, em lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes-Merry Christmas! Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal! E o mesmo grito se repete nos shakehands que se d?o ao hospede.

Sob a chaminé estala e dan?a a grande fogueira do Natal: a sua luz rica faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas brancas.

Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós pendem ramos de fl?res de inverno, as fl?res da neve, e todas as pratas da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal. Dos grandes lustres balan?a-se o ramo symbolico do mistletoe, o ramo do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem sob a sua ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las n'um grande abra?o! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada, para evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se assustam, e a cada momento é sob o mistletoe um grito, um beijo, dois bra?os que prendem uma cinta fugitiva...

E o piano n?o se cala n'estas noites! é alguma velha can??o ingleza, em que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dan?a da Escossia, que se baila com o gentil ceremonial do passado.

E por corredores e salas, as crean?as, os bébés, com os cabellos ao vento, vestidos de branco e c?r de rosa, correm, cantam, riem, v?o a cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque á meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez mil annos de edade e um cora??o de pomba, e que já a essa hora vem caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos bot?es, apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel Santo Claus! por um tempo t?o frio, n'aquella edade, deixar a cabana de algod?o que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas do mar e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal!

Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle chegar, como correr?o todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume, a esfregar-lhe as decrepitas m?os regeladas, a offerecer-lhe uma ta?a de prata cheia de hidromel quente-que elle bebe d'um trago, o glut?o! Depois abrem-se-lhe os alforges. Quantas maravilhas!...

Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto é Father Christmas-o papá Natal.

Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se abre a sala da ceia: ent?o lá está sobre o seu pedestal, ao centro da meza-que lhe p?e em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel brilho d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá Natal!

O respeitavel anci?o, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de neve, as m?os escondidas nas largas mangas de frade, o olho magan?o e jovial, esgar?a a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas enormes barbas de algod?o pendem-lhe até aos pés. Todas as crean?as o querem abra?ar, e elle n?o se recusa, porque é indulgente.

E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara; as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e alli está, bonacheir?o e veneravel, com a importancia de um deus tutelar e amado, como a encarna??o sacramental da alegria domestica.

E no emtanto fóra, na neve, as pobres crean?as cantam as l?as: e com que vigor as cantam! é que ellas sabem que n?o ser?o esquecidas: e que d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de toda a sorte de cousas b?as, pe?as de carne, empadas, vinho, queijos-e mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os vêr esvaziados no rega?o dos pobres.

Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O Natal com uma lua c?r de manteiga a bater n'uma terra tepida de Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume n?o tem poesia intima; n?o ha l?as; Santo Claus n?o vem; o papá Natal parece um boneco insipido; n?o se colhe o mistletoe. N?o ha mesmo a alegria de abrir a janella e p?r no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de migalhas do Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que tanta fome soffrem pelas neves. Emfim, n?o ha Natal! Foi o que succedeu este anno...

Resta a consola??o de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto e se se n?o tiritou toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente indifferente que nos castellos as damas bocejassem.

Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o lume do sal?o chegue a aquecer-quando se considere que lá fóra ha quem regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias. é justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoismo-que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com uma amargura maior. Basta ent?o vêr uma pobre crean?a, pasmada deante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma boneca de pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis bra?os-para que se chegue á facil conclus?o que isto é um mundo abominavel. D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a pensar mais nos pobres, a n?o ser alguns revolucionarios endurecidos, dignos do carcere-e a miseria continúa a gemer ao seu canto!

Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre de entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, amea?ou-n'os, n'uma palavra immortal, que teriamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revolu??es successivas fazer falhar esta sinistra profecia-mas as revolu??es passam e os pobres ficam.

N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado de Leicester est?o morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles fazem, quatrocentos contos de reis de renda! é verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no craneo.

E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester estar?o de novo a soffrer a fome e o frio-e o filho do duque de Leicester, duque elle mesmo ent?o, voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por anno.

N?o é possivel mudar. O esfor?o humano consegue, quando muito, converter um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha raz?o: haverá sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior erro que jámais Deus cometeu.

Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingenuo de provincia é que ainda considera progresso a inven??o ociosa d'esses bonecos pueris que se chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e difusas que se denominam systemas sociaes.

Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma certa altura de civiliza??o; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma cambalhota secular.

O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma vetusta tradi??o o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo domestico e social. Já n?o fallo de gregos e romanos: ninguem hoje tem bastante genio para comp?r um c?ro d'éschylo ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos grotescos; nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus; agitavam-se em Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que nós inventamos n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás legi?es de Germanicus; n?o ha nada equiparavel á administra??o romana; o boulevard é uma viella suja ao lado da Via áppia; nem uma Aspasia temos; nunca ninguem tornou a fallar como Demosthenes-e o servo, o escravo, essa miseria da Antiguidade, n?o era mais desgra?ado que o proletario moderno.

De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu veneravel pae-o macaco: excepto em duas coisas temerosas-o soffrimento moral e o soffrimento social.

Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou a poupar Noé; se n?o f?sse o egoismo senil d'esse patriarcha borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gosariamos a felicidade ineffavel de n?o sermos...

            
            

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