Chapter 3 O INVERNO EM LONDRES

Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe ou?o fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz dolente e vaga: n?o é o velho semi-deus de attributos mythologicos, com a barba em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando nos dedos, e o classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapag?o enfarruscado, de casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carro?a negra com um forte percheron aos varaes, pelo macadam já endurecido da geada, e soltando de porta em porta, o seu preg?o melancholico: Coals! coals! (carv?o! carv?o!)

Est?o, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados do Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas margens do Severn, ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de Shakspeare torna quasi sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey, é o mais belo, o mais util repouso que póde ter o espirito sobresaltado, can?ado dos livros, ou do duro movimento da vida.

Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pag?os sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo das culturas, d?o a fei??o romantica e elegiaca que falta á paysagem latina.

Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e aristocraticas, solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento religioso, leva a alma insensivelmente para alguma cousa de muito alto e de muito puro: ha um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que deve haver por sobre as nuvens, um silencio que n?o existe na paysagem dos climas quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte parece fazer um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a influencia de uma caricia. E a cada momento s?o fundos encantadores de paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta de heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques, onde se entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente apparece n'uma eleva??o, com os seus terra?os de marmore escuro, os grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da profundidade dos arvoredos...

D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento...

Esta monotonia, que come?a escurecendo os campos desde novembro, vae causar este anno uma innova??o excellente nos costumes sociaes da Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma esta??o d'inverno em Londres.

Como sabem, Londres só é habitado desde os come?os de maio até aos primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é verdade, entre tres a quatro milh?es de humanidade: mas é uma humanidade subalterna, feita de barro vill?o, sem valor social em Inglaterra: é a humanidade que n?o tem castellos, nem parques de tres legoas, nem o seu nome no Livro d'Ouro, nem yachts de luxo para bordejar nas costas da Escossia; é a humanidade que n?o tem nas arterias o famoso sangue normando, esse sangue invejado, mais precioso que o de Christo, cantado por todos os poetas da c?rte, e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro, e pelludos como féras, que acompanhavam a estas ilhas Guilherme da Normandia; é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem-amado, chamava a canalha, e que o grande sacerdote da Bella Helena, o pobre Offenbac, designava, com tanto criterio, pelo nome de vil multid?o:-é o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o philosopho, o operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.

é esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade superior, os dez mil de cima, como aqui t?o pittorescamente se diz, partem para os seus castellos, as suas villas á beira mar, ou os seus yachts.-Londres, apenas habitado pela turba abjecta, torna-se sobre a face da terra, como a lamentavel Cacilhas. Nenhum gentleman que se respeite e queira manter o seu bom nome social ousaria confessar que esteve em Londres em janeiro: correria o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, peior, por um philosopho, um poeta, um d'esses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castello e sem matilha de c?es, que nenhuma Lady quereria ter no seu ?rol de visitas?.

Se um gentleman, tendo negócios instantes em Londres, é for?ado a vir a este deserto de plebeus, guarda um incognito severo; n?o chegará talvez a p?r barbas posti?as; mas só se arrisca pelas ruas no fundo escuro de um cupé com os stores descidos, e o paletot rebu?ando-lhe a face. Todavia uma aventura t?o poderosa poucos a ousam!

Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar em Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno janeiro, na espessura dos nevoeiros. Esta revolu??o consideravel foi, como todas as fecundas revolu??es, tramada, prégada, popularisada pelas mulheres.

Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a melancholia da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda, nos primeiros tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os esplendores da season, a existencia era toleravel. Havia as regatas elegantes de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois vinham as festas da abertura da ca?a; seguia-se a epocha dos yachts, as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes da Normandia; depois, quando a c?rte está na Escossia, vinha a ca?a do veado, os bailes de gellies das montanhas... Emfim, vivia-se.

Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social, a fashion, obrigava os dez mil de cima a recolherem-se aos seus castellos, á solid?o do campo. E ahi come?ava para as damas o tedio memoravel!

Quando se n?o tem um chateau e parque como os de Inglaterra, póde parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias, entre maravilhas d'arte, accumuladas por gera??es, com mobilias de duzentos contos, um servi?o de sessenta criados, vinte cavallos na cocheira e um parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar sobre a neve dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgra?ada dama, desde o seu primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes n?o encontra encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres, de loja em loja, é-lhe cem vezes mais doce.

Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens, esses, de manh?, teem a ca?a, os galopes furiosos, devorando prados, saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de hally-hó! Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca, tem o grog forte no fumoir. Mas as desgra?adas damas? Todas bebem grog-mas raras s?o as que ca?am. O dia é-lhes lugubre. Uma burgueza, em Inglaterra, tem sempre uma occupa??o, mesmo nas existencias ricas: borda, pinta em porcellana, faz camisas para os pequenos Patagonios, ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve as suas memorias ou corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis de doutrina. Mas um dama das dez mil n?o faz nada; os seus grandes talentos, a toilette, a gra?a de receber, a intriga politica, o brilho da conversa??o, o chic esthetico, cousas em que prima, n?o lhe servem no isolamento relativo do castello, sob as torrentes da chuva. O seu palco natural é o sal?o de Londres. Alli no campo, nas longas galerias onde pendem as bandeiras que os seus antepassados tomaram em Azincourt ou Poitiers, ou, se os avósinhos nunca invadiram a Fran?a, as bandeiras compradas no antiquario da esquina, Mylady boceja; ou estendida n'um sofá, na sua robe-de-chambre de brocado branco de Genova, com uma novella cahida no rega?o, olha os flocos de neve empoando os grandes carvalhos do parque...

Depois vem a noite. é o peior. Os homens que fizeram talvez cinco legoas de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando em jogos athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra na camisa, estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados pelo Nocturno de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo da sala, s?o t?o inuteis para a flirtation, o espirito, a intriga, o amor, como se fossem empalhados.

Debalde as pobres damas fizeram uma toilette de duzentas libras: debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas. De nada valle. O gentleman anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se com o seu brandy and soda, estirar aquelles membros que a raposa can?ou, em len?óes bem perfumados e bem bassinés, e ressonar forte.

Esta situa??o era intoleravel.

E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de pre?o sobre a terra dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manh? de brisa fria-tem encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para o club, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases sobre a quest?o do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente boudoir de veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! N?o, n?o se póde comparar.

E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem de prosa, o snr. De Bismarck, em que ladies e lords concordaram que o inverno no campo era bom para os lobos; e que para pares de Inglaterra, Londres era preferivel. E ahi está como se vae ter esta cousa inesperada na vida ingleza-o inverno em Londres.

E, todavia, Deus sabe que elle n?o é agradavel, esse inverno de Londres! De manh?, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca, espessa, parda, arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba, com o gaz flammejando; almo?a-se com todas as velas do candelabro accesas, e a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao meio dia esta decora??o de inverno muda; a sombra perde o tom pardo e, por grada??es odiosas, ganha um amarello de óca e come?a a exalar um vapor fetido. Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre a pelle, os edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas e chimericas das cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres, este rude, tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte do ceu, adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um subterraneo.

Depois, á noite, outra mudan?a: toda esta sombra, este nevoeiro grosso, molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama, em lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro.

O gaz parece c?r de sangue; como todo o mundo, para combater esta nevoa gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um vago vapor de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita, impelle a turba ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da multid?o violenta, o rude flammejar das vitrinas d?o uma accelera??o brutal ao sangue, uma vibra??o quasi dolorosa aos nervos; pensa-se com intensidade, caminha-se com impeto, deseja-se com furor; a besta humana inflamma-se: quer-se alguma coisa de forte e de animal, a lucta, o excesso, a gula, o abrasado do cognac, a paix?o. Londres n'uma noite de inverno, exhala violencia e crime. E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que, aos milhares e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro de lanternas, vae um cidad?o ou uma cidad? commettendo ou preparando-se para commetter, com excep??o da pregui?a, um dos sete peccados mortaes.

De uma coisa se póde ter a certeza: é que n?o ha de faltar, aos que v?o fazer o seu inverno a Londres, assumpto de cavaco. Além dos livros que se annunciam, dos escandalos que n?o h?o-de faltar, das modas que sempre se inventam, a politica, só por si, é todo um ramalhete; revolta certa na Irlanda; processo por alta trai??o dos chefes da Liga da Terra, deputados da Irlanda; nova guerra no Afghanistan, onde Cabul se insurreccionou; toda a Africa do Sul em rebelli?o; complica??es sinistras do lado do Oriente; desintelligencias estridentes entre os radicaes no poder... Emfim, um encanto.

Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das Memorias, olhando n'um come?o de primavera para todos os lados do horizonte politico e social, e n?o vendo (em 1830) sen?o presagios negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria, dizia, banhado em jubilo, quasi em extasi:

-Meu Deus, que deliciosas noites se v?o passar no Club!

            
            

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